Aquele menino veste um olhar esmurrado e traz uma maldade no peito como um broche de flores feridas e pétalas não cicatrizadas. Disse o pingüim dessa casa que o medo guardado fora da geladeira apodrecia em maldade. Essa é a que vai se espalhando pelo seu corpo, sem que você perceba, e faz com que se afaste das outras pessoas. Longe, você já não consegue entender o motivo delas. E nem elas, o seu. Mas você continua numa bondade que ninguém mais entende... e, por isso, chamam aquilo de maldade. Assim era o medo daquele menino. Ele tentava ser bom, à sua maneira. Agora há pouco, por exemplo, ficou parado no meio da rua, olhando um cachorro pulguento. Os olhos daquele cachorro sabiam enxergar no fundo da gente. O menino se virou para voltar para casa. O cachorro foi atrás. O menino parou. O cachorro parou, sentou-se e inclinou a cabeça. O menino voltou a andar. O cachorro acompanhou. Quando o menino virou para trás, chutou a cara do cachorro, para que ele nunca esperasse o amor que o menino não poderia dar. E, mesmo assim, o guri tem olhos de esperança. As pessoas más são as que mais têm esperança no mundo. Só quem reconhece a própria maldade sabe que, no escuro da noite, um travesseiro é incapaz de abraçar.Quando o menino cresceu e apanhou do ladrão, apanhou, apanhou, ergueu os olhos machucados e disse: "Agora você pode me matar. Agora você pode chutar a minha cara, mas uma coisa eu sei. Eu sei que você não era assim. Eu sei que você era só um menino abraçado às pernas da sua mãe." O ladrão engolindo dois goles de raiva e saudade. Talvez de um tempo em que não era oco de mãe. Talvez os sonhos de futebol, ele agora um homem chutando pedras, sozinho no gramado, a mãe com vergonha dele. E só agora, olhando a maldade lá fora, eu enxergo o meu rosto refletido no vidro. O ladrão não está sozinho. O menino não está sozinho. A noite é uma coreografia de condenados, dançando e rolando na cama, com o travesseiro incapaz de abraços. Então, a maldade é isso? É esse que chora, sozinho, a sua mão cheia de espinhos?O ladrão acerta o seu primeiro golpe. O soco desliza sobre a boca, em câmera lenta, enquanto gotas de sangue flutuam no ar. Os antebraços tentam forjar as verdades, na frente do rosto, mas o ladrão atinge o estômogo. O corpo curva-se para a frente, abraçando o vazio. Ele ergue os olhos machucados e diz: "Agora, você pode me matar. Agora, você pode chutar a minha cara, mas uma coisa eu sei. Eu sei que você não era assim. Eu sei que você era só um menino, abraçado às pernas da sua mãe." O ladrão engolindo dois goles de raiva e saudade. Talvez de um tempo em que não era oco de mãe. Talvez os sonhos de futebol, ele agora um homem chutando pedras, sozinho no gramado, a mãe com vergonha dele. E só agora, olhando a maldade lá fora, eu enxergo o meu rosto refletido no vidro. O ladrão não está sozinho. O menino não está sozinho. No meio da rua, os violentos, os condenados, os ignorantes de amor. Todos no chão, encolhidos e ajoelhados, como sementes de erva daninha, incapazes de brotar. Ao lado de fora, uma árvore cresceu para cima e uma rua se deitou. Há uma página sendo pisada, enquanto um jornal tenta voar, pendurando-se no vento. Pousa em triângulo sobre a terra, do mesmo jeito que tenta levantar o corpo, esmurrado pelo ladrão. Depois de um dia inteiro enrolando as bananas da feira, é claro que o jornal acreditaria no mendigo, dizendo que o asfalto é só uma noite dura e sem estrelas. O dia dormindo em trapos remendados de sol, enquanto a noite faminta arranca os sonhos com as mãos. Mais outro dia derreado pela noite e aquele homem quem será? Aquele, que um dia foi menino a dormir no ventre da mãe e hoje dorme curvado do frio, em posição fetal. Tão encolhido que o vento não haveria de encontrá-lo ali. Era só fingir-se de morto, porque os mortos, sem ao menos respirar, enganam o frio, o vento e a fome. As bananas da feira sendo enroladas pelas histórias. Um cachorro expulsando pulgas sobre as histórias. O estômago do faminto gargalhando sob as histórias. E eu acariciando o jornal.Aquele menino levanta um aviãozinho de papel porque não sabe que o céu explode em bombas, em chamas de vermelho voar... Como é que os pássaros vão entender? Como é que os pássaros vão voar outra vez? O caraço no meio da feira não viu a flor sufocada nas pedras. E a flor não sabe que a terra também explode em campos minados, onde menos se espera, onde menos se pisa. Como é que as sementes vão entender? Como é que as sementes vão brotar outra vez?O soldado pegou a arma lentamente. Segurou-a entre as mãos e abriu os olhos, na esperança de que fosse um girassol. Mas sementes ao reverso plantavam a morte no peito do outro e, por isso, ele calou. O inimigo caiu no chão e levantou a mão com os dedos abertos. Um pedaço de braço tentando brotar do chão estéril, mas murchando em seguida, com os últimos raios de vida. Eles, completamente estranhos, já eram inimigos. O girassol apontado para o céu. Da boca. E foi então que dois meninos, de cabelos reluzentes, entraram correndo pelos campos concentrados de flores. Duas armas de plásticos, compradas na feira, explodiam em tiros ao som da bochecha. Os dois se arrastando pelo chão. Escondido atrás de uma barraca de peixes, um deles pegou a arma lentamente. Segurou-a entre as mão e abriu os olhos, na esperança de que fosse de verdade. Mas era. Agora, você pode me matar, disse o menino crescido. Agora, você pode atirar na minha cara, mas uma coisa eu sei. Eu sei que você não era assim. Eu sei que você era só um menino, abraçado às pernas da sua mãe. A mãe com olhos de fúria, com as mãos na garganta do menino. Pétalas enfeitando o seu cabelo, pétalas caindo por toda parte, até que a mãe precise de suas mãos para costurar a manta que vai aquecer o seu filho. Ela o cobre até o pescoço, beija a sua face, acariciando a sua barriga, esperando o menino chegar. Sua mãe como um anjo brilhando entre as pétalas que curam o pescoço ferido do menino. O menino tira as mãos da mãe do seu pescoço. Eles precisam brincar de passa-anel, rindo até a brincadeira acabar. Quando a brincadeira acaba, a mãe aperta mais um pouco o pescoço do filho, aperta, aperta, até que aperte tão forte que os braços fiquem com vontade de abraçar. Assim, a mãe pára de enforcar o menino porque os seus braços abraçam, os seus braços só querem abraçar. Um abraço tão bom que o menino nem se lembra mais das mãos em seu pescoço. Ele, que nasceu direto do coração da sua mãe, agora jaz sobre a terra, em companhia de um caroço de maçã.
Adaptado.





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